Estamos assistindo nestes dias, por causa do segundo turno das eleições para a presidência da República, um debate superficial sobre o tema do aborto. Interesses políticos, econômicos, religiosos se misturam no confronto. Na verdade, nem de debate se trata, mas de uma campanha desleal e difamante que usa o tema do aborto como bandeira, para atingir o coração principalmente dos/as católicos/as, em busca dos seus votos (continua...).
Não quero entrar em detalhes legais, médicos ou éticos para justificar ou defender o aborto, nem o contrário. Quero oferecer alguns questionamentos sobre a manipulação que se faz deste tema, desta realidade dramática.
Não resulta curioso que sejam os setores mais conservadores da sociedade e da Igreja (que nunca se preocuparam com a maioria pobre do país e do mundo) os que mais rejeitam a mudança na lei sobre o aborto?
Por que não se investem os esforços, energias e recursos que se dedicam a lutar contra o aborto (defendendo a vida dos não nascidos) para defender, proteger e garantir também a vida digna dos já nascidos, abortado em vida, de milhões de seres humanos condenados a sobreviver como animais? Está claro, é muito mais fácil defender a vida daqueles que não dependerão de mim. A final de contas, a criança por nascer será responsabilidade única da mãe... que se vire! Mas esses milhões de empobrecidos/as, seu futuro e sua dignidade dependem fundamentalmente da distribuição justa das riquezas, do uso racional e solidário dos recursos... sua vida, por tanto, depende de mim! Aí não... É fácil defender a vida que não questiona, nem mexe, nem condiciona minha forma de viver. É fácil defender a vida, quando esta nada tem a ver comigo.
A lei vigente já não responde às necessidades e condições da realidade atual. Mudar a lei e elaborar uma nova significa iniciar um debate nacional que, como toda troca de ideias, pode ser muito enriquecedor para a sociedade toda. Quem tem medo de pensar? Quem prega em homilias e palestras que não devemos pensar, senão aceitar cegamente o que “mestres e doutores” falam para nós? Quem rejeita uma teologia dialogante, aberta e criativa, propondo como teologia única a transmissão de verdades, sem discussão nem questionamentos?
Sabemos que as causas e consequências do aborto não são superficiais. Como sacerdote, tenho recebido e acompanhado a não poucas mulheres grávidas que queriam praticar um aborto, e outras que já tinham praticado. O que essas mulheres vivem é dramático. Somente colocando-nos no seu lugar poderemos começar a imaginar o que sentem, seus sofrimentos e a dor causada pela experiência de morte que vivem. Banalizamos o aborto quando esquecemos a mulher e olhamos somente os dogmas, tópicos gerais que não expressam nada, mas que enchem a boca de quem os proclama. Em todas as situações de possível aborto existem, pelo menos, duas vidas que devem ser escutadas, atendidas, amadas e protegidas.
O aborto é, nestes momentos, um dos problemas mais complexos que existem na nossa sociedade. São inúmeras as variantes, condições, necessidades, carências, limitações e possibilidades que existem e que fazem que, cada caso, seja único. Um problema tão complexo não pode ter uma solução simples: “sim ao aborto em todos os casos” ou “não ao aborto em todos os casos”. Hoje precisamos de leis abrangentes, que contemplem o maior número possível de variantes, que respondam a todas as situações possíveis. Quando nos envolvemos em problemas complexos, percebemos rapidamente que as soluções não são simples nem automáticas. Na problemática do aborto se combinam múltiplas variáveis, de tipo legal, médico, ético, cultural, religioso, econômico... Um problema tão complexo não pode ser resolvido com um simples sim ou não.
Como acabo de expressar e denunciar, até um posicionamento radicalmente contrário ao aborto, por motivos religiosos e éticos, pode estar condicionado por interesses econômicos e políticos de classe. Defendemos a vida desde a sua concepção até o momento final... mas só de uns poucos, daqueles que não complicarão minha vida, meu nível econômico, meus privilégios e tranquilidade. Muitos deles nascerão, porque nós defendemos sua vida, para serem condenados a sobreviver como abortos em vida. Ah, mas esse problema já não é mais comigo, esse é um outro departamento.