É de todos conhecido o ditado olímpico, não sei se oficial ou popular, que reza: "o importante é participar". Por este caminho quero conduzir minha reflexão de hoje. O importante é participar quando garantida a igualdade de condições de todos os competidores. Mas quando as condições não são as mesmas, o que é realmente o importante? ...
Tenho a sorte de viver estes dias de "decisão olímpica" na Espanha, último e definitivo concorrente superado pelo Brasil. Estão sendo dias de contrastados sentimentos: alegria ou tristeza, entusiasmo ou decepção, comemoração ou frustração, dependendo da perspectiva adotada: espanhola ou brasileira. As olimpíadas se realizam numa cidade, por isso os projetos apresentados não são nacionais, no entanto cada cidade candidata representa o país todo, é por isso que não falo de Rio ou Madri, mas de Brasil e Espanha.
Na decisão final, o Comitê Olímpico Internacional teve de escolher entre dois países bem diferentes: Brasil e Espanha. As duas candidaturas se apresentavam como apostas diferentes, Madri como aposta pelo presente e Rio pelo futuro. Espanha se apresenta pelo que foi e pelo que é: uma história e cultura milenares, tradições, instituições e infra-estruturas que garantem segurança, diversão, hospitalidade... Brasil, ao contrário, apresenta um futuro que está nascendo no meio de uma realidade difícil: representando aos países empobrecidos (mais do que "países em desenvolvimento") reclama sua vez no mundo (não só no olímpico, mas no mundo todo), porque a pobreza, a violência, a injustiça não fazem parte do projeto de país que o Brasil (e tantos outros países do Sul) estão desenvolvendo, fazem parte de uma história e de um modelo sócio-econômico e político imposto por muitos séculos e que agora carregamos com todas suas consequências.
No momento histórico que estamos vivendo, contexto mundial de crise econômica (e crise do modelo neoliberal, embora quase ninguém relacione a crise com o modelo que a causou), a candidatura brasileira se apresenta como alternativa aos mitos do modelo global atual: alternativa ao mito de que somente desde o modelo do primeiro mundo se pode ter voz nesta história; alternativa ao mito de que a riqueza exagerada de uns poucos arrastará todos a um crescente bem-estar (Brasil conhece muito bem as consequências disso); alternativa ao mito sobre as verdadeiras necessidades da pessoa e da sociedade (para sermos felizes precisamos de liquidez econômica para manter um alto nível de consumo, segurança pública para que ninguém se aproveite de nossas conquistas individuais, e de um governo fraco no momento de pedir impostos e forte para nos atender eficientemente com todos os serviços públicos possíveis).
E por que falo de alternativa? Brasil hoje se apresenta como uma potência mundial (emergente a chamam os ricos), mas o que tem de diferente esta potência?
No início da crise mundial os setores econômicos brasileiros, que sempre estiveram ligados ao poder, criticavam o governo por "ignorar" a mesma, por não se preparar para enfrentá-la, por pensar que "sabia mais" ou que era melhor que os outros países mais ricos e poderosos arrastados já pelas correntezas da crise. A resposta sempre foi a mesma: a crise não nos afetará da mesma forma, porque neste momento nossa economia não é como a dos países ricos, por isso responderemos dando continuidade à política econômica que já estamos implementando. Mas a verdadeira diferença não se encontra só na política (que é consequência e não causa), senão no modelo de sociedade que se tem. Quem vive num país cheio de tantas possibilidades como escandalosas desigualdades, de experiências antigas e atuais de exploração, sempre acostumado a engordar o "gado" próprio ou alheio com a fome do povo, e se posiciona nessa realidade com atitude comprometida, não pode senão afirmar que o único futuro possível para uma humanidade em condições tão desiguais, é se igualar por abaixo, nos mínimos fundamentais para garantir uma vida digna (que não fácil nem cômoda, porque a vida do ser humano é qualquer coisa menos isso), realmente humana e para todos os seres humanos de hoje e do futuro. A economia resultante dessa opção visa democratizar uma renda mínima digna, aumentando a produção e consumo dos bens básicos (mesmo seja diminuindo a produção e consumo de bens desnecessários e de luxo). A consequência imediata é uma parada brusca nos índices macroeconômicos do país, o que indica menos lucro para os grandes grupos econômicos nacionais e internacionais (e por isso este modelo econômico é perseguido por eles e pelas instituições internacionais que garantem seus privilégios).
A olimpíada brasileira pode ser o momento de mostrar ao mundo que a solução da crise e de todas as crises (aquelas que continuam matando milhões de pessoas inocentes, sem contas nos bancos, nem créditos, nem ações na bolsa) não se encontra na concorrência para se apropriar da riqueza, mas na construção solidária de um verdadeiro e básico bem-estar para a humanidade toda.
No extremo oposto encontramos a situação da Espanha, país que exemplifica o boom do novo modelo. Com uma economia focada na produção rápida de "riqueza virtual": sustentada na geração ilimitada de necessidades, condição básica para poder comercializar uma exagerada produção de bens desnecessários (já que a tecnologia se aplica somente na produção de bens supérfluos para facilitar a vida de alguns humanos, não na sustentabilidade da vida humana mesma), riqueza que se movimenta no mercado irreal da especulação e na produção ilimitada de lucro não investido, mas negociado. Espanha substituiu uma economia produtiva por outra comercial e de serviços, transformou a maior parte da população em classe-média, consumidora insaciável, centrada no seu próprio bem-estar sem se importar pelo preço do mesmo (que outros pagam, claro). Quando a crise mundial chegou, Espanha afundou no mar das falências, do fechamento de pequenas empresas e negócios, do desemprego, da inadimplência, da diminuição do consumo. As soluções até agora oferecidas visam manter o mito da classe-média, e o modelo da sociedade de consumo e do mercado virtual global. Ainda mergulhando nas dolorosas consequências da crise, Espanha apresenta hoje a ilusão do modelo que perseguiu e que nunca chegou a construir: uma sociedade acolhedora (não se fala dos problemas raciais e culturais que hoje existem), segura (se omite a violência inter-racial, da delinquência ou por diversão que hoje acampa na sociedade espanhola), culta (é só estudar as pesquisas e os índices de qualidade do ensino no país, ou o estilo de vida de adolescentes e jovens espanhóis, para se perguntar o que significa "ter cultura"). Espanha se apresenta como um mundo feliz, enquanto seu modelo de prosperidade e bem-estar se desmorona, sendo os mais prejudicados aqueles que, antes nos seus países e agora aqui, pagam com a miséria (ou com empregos sem condições dignas e mal remunerados) o preço do progresso dos desenvolvidos, "o norte" (mundial e de cada país).
Nos jogos olímpicos o importante é participar e que vença o melhor, mas nas olimpíadas da vida o primeiro e urgente é igualar as condições de todos os competidores, para que vençamos todos. Esse é o verdadeiro espírito olímpico que devemos criar, nos jogos, na política, na economia... 2016 é uma boa oportunidade para que o Brasil, país que está tentando criar um modelo diferente e verdadeiramente democrático (de todos e para todos), mostre ao mundo o que significa o espírito olímpico na vida das pessoas, das sociedades e do mundo.
Bom dia Carlos,
ResponderExcluirAdorei o artigo, parabéns!!