11 de maio de 2010

Traídos pela própria memória

Perante a proposta da Campanha da Fraternidade Ecumênica
O ser humano é engraçado. Cada dia me surpreende mais a capacidade, e facilidade, que temos os humanos para “esquecer” aquelas coisas, expressões, experiências, propostas e até críticas que nos incomodam, que mexem com nosso “natural equilíbrio”.
Esquecemos as experiências negativas que nos magoaram (no entanto, a mágoa permanecerá aí do mesmo jeito), os erros cometidos, as responsabilidades não assumidas, etc. Apagamos da nossa memória consciente tudo aquilo que nos atrapalha, nos pesa ou nos incomoda. A nossa psicologia é assim.
Infelizmente, essa armadilha psicológica não se limita a aspectos emocionais. O esquecimento proposital atinge também a nossa experiência de fé. O tema da atual Campanha da Fraternidade (economia e vida) nos ajudará a compreender isto que afirmo ...
Que a economia deve estar a serviço da vida das pessoas é claro, imagino que ninguém será tão descerebrado para afirmar o contrário. O problema não está em admitir afirmações tão categóricas e claras, do tipo: a pessoa tem valor absoluto, enquanto o dinheiro é um valor relativo e subsidiário; os sistemas econômicos são meios criados pelas sociedades a serviço do bem comum; o lucro nunca pode ser mais importante que a dignidade das pessoas; e outras desse estilo. O conflito aparece quando tiramos consequências éticas, políticas, econômicas, sociais e pessoais dessas frases.
Mas a Campanha da Fraternidade nos coloca ainda outro desafio, desta vez nascido da proposta de vida cristã: não podemos servir a Deus e ao dinheiro. E pensando nessa frase tirada do Evangelho de Mateus é que me nasce um questionamento. Se os Evangelhos (a proposta de vida que Jesus fez e, através da Palavra viva que é a Bíblia, continua nos fazendo) são tão claros, como é que nós cristãos damos tão pouca credibilidade a determinadas palavras de Jesus? Quero dizer, e continuando com a reflexão que inicia este escrito, que é muito fácil esquecer aquelas propostas, críticas, advertências e outros ensinamentos que Jesus nos faz, enquanto lembramos direitinho daquelas que nos interessam, que não mexem com o nosso estilo de vida, que não questionam nossa consciência. Colocarei alguns exemplos.
“Havia um homem rico que se vestia de púrpura e linho fino, e dava banquete todos os dias. E um pobre, chamado Lázaro, cheio de feridas, que estava caído à porta do rico. Ele queria matar a fome com as sobras que caíam da mesa do rico. E ainda vinham os cachorros lamber-lhe as feridas...” (Lc 16,19) Texto bem conhecido, uma parábola revolucionária. O povo judeu acreditava que a riqueza era uma benção de Deus e a pobreza um castigo. Imaginemos esse povo escutando dos lábios de Jesus que o pobre Lázaro (único que tem nome na parábola, portanto dignidade) foi salvo (só pelo fato de ter sido pobre), enquanto o rico é condenado ao sofrimento eterno, somente pelo fato de não ter sido compassivo (se continuou sendo rico diante do pobre, quer dizer que não teve compaixão dele). Com certeza que ficaram escandalizados.
“Vendo isso, Jesus disse: - Como é difícil para os ricos entrar no Reino de Deus!” (Lc 18,24). O que foi que Jesus viu antes de afirmar isso? Ele presenciou a decepção de um jovem que queria ser “como Jesus”, mas foi incapaz de largar fora sua riqueza. É que não se pode ser rico e cristão? Para Jesus não, infelizmente para nossa Igreja sim... Será que nos esquecemos destas frases de Jesus? E por que um rico não pode ser cristão? Porque ser cristão significa viver a serviço do outro, até doar a própria vida se for necessário. Diante dos milhões de indigentes que vivem morrendo, carecendo do mais básico para sobreviver, o que eu possuo sem necessidade se transforma em acusação para mim, revelando meu egoísmo. Uma pessoa com mais recursos econômicos que um país completo, uma família vivendo com o que milhões de pessoas precisam para não morrer, podem ser cristãos? Sim, deixando de ser ricos!
"Entre eles ninguém passava necessidade, pois aqueles que possuíam terras ou casas as vendiam, traziam o dinheiro e o colocavam aos pés dos apóstolos; depois, ele era distribuído a cada um conforme a sua necessidade”. Essa é a verdadeira proposta cristã: ninguém rico, para que ninguém tenha que ser pobre, porque cada rico tem um preço muito alto: a vida de vários milhões de pessoas. O Reino que Jesus anuncia consiste nisso, na partilha para que a ninguém falte o necessário; em não acumular o desnecessário, para que a outros não falte o básico. O mundo não tem recursos suficientes para que todos sejamos ricos, mas tem para que todos vivamos dignamente, portanto, a riqueza de uns poucos está condenando hoje milhões de pessoas a morrer lentamente na miséria.
Talvez as palavras mais claras e, por isso mesmo, exigentes: “todas as vezes que vocês não fizeram isso a um desses pequeninos, foi a mim que não o fizeram” (Mt 25). Quantas coisas estão fazendo os católicos ricos do nosso país e do nosso mundo pelas massas de “pequeninos” excluídos, famintos, abandonados à miséria e violência, explorados...? Todos somos responsáveis, mas olhando o nosso estilo de vida, devemos afirmar que uns são mais responsáveis que outros. São Basílio, no século IV, já deixou bem claro escrevendo sobre os ricos que não partilham sua riqueza: “cometes tantas injustiças quanto as pessoas que poderias ajudar”.
E, por último, as palavras lembradas pela Campanha: “Não podem servir a Deus e ao dinheiro” (Mt 6,24). É fácil se justificar: “eu tenho dinheiro sim, mas não sou escravo dele”. Zaqueu se libertou efetivamente de sua riqueza no momento que decidiu: «A metade dos meus bens, Senhor, eu dou aos pobres; e, se roubei alguém, vou devolver quatro vezes mais» (Lc 19,8). O Zaqueu rico se transforma em não-rico quando se faz seguidor de Jesus. Neste mundo dilacerado pela miséria, a fome e as doenças simples que matam milhões de inocentes, quem possui muito mais do que precisa para viver com dignidade,está numa situação de verdadeiro pecado. Talvez seja verdade que não serve ao dinheiro, se serve dele, do dinheiro próprio e do dinheiro que milhões de pessoas precisam para sobreviver, e que ele guarda para nada. Pode falar o que quiser e até pode ajudar muitos pobres, seu deus é o dinheiro, o luxo, o prazer, ou ele mesmo, sua riqueza fala por ele, gritando ao mundo sua falta de compaixão, de solidariedade, de amor. Pode um cristão viver numa situação tão gritante e escandalosa como essa? Talvez até se considerem católicos. Talvez até sejam militantes das “causas morais” da Igreja Católica (luta contra o aborto, os anticoncepcionais, em defesa da família, da educação católica...), o que não dá para compreender é que não tenham problemas de consciência diante dos milhares de pessoas que estão sendo “abortadas em vida” pela sua falta de solidariedade e compaixão.
Quando as palavras de Jesus nos incomodam, mexendo com nosso estilo de vida, é fácil cair na tentação de “cortar” o Evangelho, condenar ao esquecimento frases, parábolas, propostas, exigências de Jesus. Infelizmente o que mais predomina na Igreja de hoje são os cristãos “de cardápio”, aqueles que escolhem o que querem acreditar, o que querem aceitar da proposta de Jesus. E o resto do Evangelho? Não estão nem aí.
Quando Jesus aponta o dedo à nossa responsabilidade (por ação ou omissão) pelo massacre da miséria deste mundo, é fácil olhar para outra parte, colocar o foco da nossa fé na resolução milagreira e egoísta das nossas necessidades individuais, na satisfação das nossas carências e frustrações afetivas. Louvar a Deus sempre foi mais fácil que amar a Deus (quem somente pode ser amado através do amor aos outros). E lembremos que cristão é quem segue Jesus, tentando viver como ele (suas opções, atitudes, valores...) e não quem somente adora Jesus.
Quando a pressão cultural é mais forte que a vivência da fé, esta se transforma em um acréscimo, o enfeite de uma vida já “cozinhada”. Mas, uma fé que acrescenta sem mudar, que enfeita sem transformar, será realmente fé cristã? Duvido.
A Campanha da Fraternidade toca um tema necessário e urgente para o destino do nosso mundo e, principalmente, para o futuro da humanidade, ou de outra forma: para que a humanidade tenha futuro. Infelizmente, e tomara esteja enganado, acho que esta Campanha passará rápido e sem consequências, tanto pela sociedade como pela Igreja.
Gostemos ou não, a única forma de garantir vida digna para a humanidade toda, passa pela redução dos níveis de consumo, do bem-estar, da produção de “bens” desnecessários. Passa pela renúncia à atual corrida desenfreada do mercado e do consumo. Hoje se faz extremamente necessário e urgente renunciar ao lucro de uns poucos para garantir a dignidade de todos. E essa nova cultura começa por cada um.
São José de Calasanz abandonou definitivamente os palácios e as riquezas dos Cardeais romanos quando descobriu o rosto sofrido, abandonado e maltratado de Jesus Cristo nas crianças mais pobres. Exemplo chocante nos dias de hoje, como chocante foi e continua sendo Jesus. Mas fiquemos tranquilos, até isso tem solução... É só esquecer desses detalhes e, mais uma vez, olhar para nosso umbigo e fazer nosso próprio cardápio... A memória (e a falta dela) é nossa melhor aliada... e nossa pior inimiga.

2 comentários:

  1. Mais uma vez...valeu Aguerrea!Suas crônicas sempre nos levam a refletir sobre nossas atitudes.Somente um pequeno comentário: como ficam os nossos "queridos" padres, bispos que vivem na riqueza e esquecem do mais importante:JESUS CRISTO? São seguidores de Jesus?São verdadeiros cristãos?

    ResponderExcluir
  2. Pois é... por isso falava que todos/as (começando por mim) somos incoerentes, mas se compararmos o nível de vida e de gastos que temos umas pessoas e outras, realmente é para se questionar. Todos/as temos muito que deixar para realmente sermos melhores seguidores/as de Jesus. O que me parece mais triste e escandaloso é que ainda se identifique riqueza e prosperidade com "benção de Deus", quando todos conhecemos sua origem: o egoísmo, quando não a injustiça.
    No posso compreender que um rico seja cristão e não deixe de ser rico. E ao mesmo tempo reconheço que eu não sou modelo de seguimento radical de Jesus... ainda estou a caminho.

    ResponderExcluir